Para Burgossxx

Como Stephen Dedalus, certa ocasião, em 1988, resolvi partir.

Sem saber por quê. Talvez buscar inspiração para meus textos.

Aprender novas línguas,

Suporte para a elaboração de textos ricos e bonitos.

Deixei tudo, como James Joyce. Fui. Para Alemanha.

Subi no avião no Rio e, por economia, desci em Madrid,

Para seguir de ônibus até meu destino.

Um amigo me passou alguns contatos na cidade.

Um imprevisto, entretanto, aconteceu. Ainda no avião,

Esse Stephen Dedalus tupiniquim começou a ficar triste,

A chorar no escurinho e a se arrepender. Era tarde.

 

Fui recebido pela parte amável de Espanha. E que amável!

Salvador, Charo, Consuelo e Juan Luis,

E um padre em cuja casa me hospedei,

Que vergonha! Esqueci o nome dessa pessoa gentil.

Creio que a parte amável de Espanha

Deve ser a mais amável das partes amáveis do mundo.

Levaram-me a passear por Madrid, e eu triste,

Todos os lindos monumentos e praças, o Prado, e eu triste,

Levaram-me ao El Corte Ingles, e eu tristíssimo.

 

Salvador era um ex-padre.

Trabalhara durante um ano no Brasil.

Casara-se com uma ex-freira de Burgos

E tinham um casal de crianças lindíssimas.

Aparentavam ter entre sete e oito anos de idade.

Estava almoçando em sua casa,

Quando Salvador começou a cantarolar “Casinha Pequenina”.

Conhecera uma pessoa no Brasil, Irmã Irene, de São Félix do Araguaia,

Que tocava e cantava essa música divinamente, disse.

 

Desabei de imediato. Senti um nó terrível na garganta. Emudeci.

Lágrimas enuviaram-me os olhos. Estava a ponto de um colapso.

Sua arguta mulher percebeu meu constrangimento e ordenou que parasse.

Para descontrair, ela então olhou para os lindos filhos

E falou algo assim: contem para nosso convidado

En donde vamos, en las vacaciones, a ver la abuelita.

Os dois lindos, bem sérios, em voz uníssona,

Mirando-me fixamente nos olhos, disseram: Para Burgos.

 

Os espanhóis chiam graciosamente

Quando pronunciam o “s” final das palavras. Para Burgossx.

Tão graciosos foram em sua pronta resposta

Que o pai também repetiu a pergunta: nosso convidado

Não compreendeu para donde vamos en las vacaciones, a ver la abuelita.

E as vozes uníssonas, mirando-me fixamente, sérios, repetiram: Para Burgossxx.

 

Desta vez me pareceu ver, não tenho certeza,

Em seus rostos sérios, fixando-me, uma pequena nuance de impaciência,

Algo assim como: claro que é para Burgos, onde está a avozinha.

Imaginando-se que fossem capazes de alguma pequena grosseria,

Poderiam estar pensando, talvez, não creio, lá dentro de si,

Ao mirar-me: haverá, por acaso,

Algum outro lugar no mundo para se passar as férias,

Que não seja Burgos, tonto?

Seja como for, eram tão graciosos que consegui sorrir.

 

Demorei-me três dias na Espanha.

Passados mais de trinta anos, quase não me recordo dos detalhes,

Só sei que fui recebido com estupenda lhanura.

Aqueles lindos rostinhos, porém, totalmente alheios à minha aflição,

Ansiosos apenas pelos carinhos e bolos da vovó,

Pelos passeios de férias, não esqueci.

Porque, na vida,

Para as coisas ternas,

Não existe olvido.

 

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