Em abril de 2020
Comprei um livro usado em um alfarrábio.
Um livro sobre danças e balé
Impresso no México em 1949.
Ao chegar em casa, desembalei e abri o velho livro.
Amarelada pelo tempo, a folha de epígrafe
Continha uma dedicatória escrita à mão assim:
Pancha, las mas grandes esperanzas
Se hagan realidad en esta Navidad
Y que el Año Nuevo sea portador
De dicha y prosperidad,
Mil Felicidades!
Pepe 25.12.1981
Fiquei um pouco pensativo e melancólico ao ler esta inscrição
Escrita há trinta e nove anos atrás.
Imaginei, um pouco triste,
Que Pancha talvez não tenha conseguido
Toda a prosperidade que lhe desejou Pepe.
Caso contrário não teria se desfeito
De tão precioso presente de palavras tão meigas.
Sendo tudo possível, pensei também
Que aquelas palavras meigas tenham brotado
De um coração amante não correspondido.
Destarte a amada que não amava
Tratou logo de trocar as palavras meigas
Por alguns insignificantes mirréis.
Ou quem sabe Pancha envelheceu, morreu
E os herdeiros insensíveis
Venderam o precioso livro de enorme valor afetivo.
Também pode ter acontecido
Que Pepe e Pancha realmente se amavam,
Formavam um belo par, dançavam balé
Giravam, às vezes, num magnífico pas de deux,
Para enlevo e delírio da plateia que aplaudia,
Mas num dia obscuro o amor expirou,
Como tudo se finda, como tudo se encerra,
Como uma luz se extingue, uma flor fenece,
E com elas muitas ternuras
Que um dia também iluminaram.
Então Pancha resolveu colocar o livro,
Entre outras quinquilharias e coisas do passado,
Para doação em alguma quermesse.
Ninguém pode afirmar com segurança
As coisas do coração dos homens,
Nem traçar com certeza o caminho de um afeto.
Há trinta e nove anos atrás
Não se pode usar “Há”, ao mesmo tempo que usa “atrás”
Bem-vindo, Professor Breno! O Professor Napoleão Mendes de Almeida, aquele das gramáticas, também gostava de sentar-se em um trono e comandar a língua portuguesa, “isso é certo”, “isso é errado”. Felizmente hoje em dia estamos mais abertos. Sabemos hoje, por exemplo, que numa correspondência oficial é aconselhável que se use uma linguagem mais culta e formal. Na literatura, entretanto, especialmente na poesia, prender-se a regras rígidas é bobagem. Por que? Porque poesia é alma, espírito e sentimento. De quem? Dos seres humanos, dos mais humildes aos mais polidos. Pense numa poesia que, em vez de expressar as emoções humanas, inclusive as mais simples e comuns, com os modos de falar do povo que sofre essas emoções e turbulências de alma, se preocupasse em seguir as regras do Professor Napoleão. Ficaria sem graça, não? Poesia é estética e sentimento. Por isso não se deve ter nenhuma preocupação de que esse verso mencionado pelo Senhor seja um pleonasmo vicioso ou qualquer outra coisa “proibida”. Ele é apenas emoção, é a nossa língua como é falada por seus falantes, sem as amarras rígidas do Professor Napoleão. É um poema, não uma carta para algum Departamento do Serviço Público.
Completamente de acordo com o admjose! A língua evolui constantemente, e o Professor Napoleão Mendes de Almeida, com toda a sua sabedoria, refletia uma época em que as regras eram mais rígidas. Hoje, entendemos que a linguagem é uma forma de expressão rica e diversificada, que se adapta ao contexto e ao propósito. Na poesia, essa liberdade é ainda mais essencial, pois é através dela que as emoções ganham vida e profundidade. Abraçar as nuances e peculiaridades da língua falada pelos seus próprios falantes é celebrar a autenticidade e a conexão humana. Portanto, não devemos temer a quebra de supostas ‘regras’ quando se trata de arte e poesia, pois é isso que torna cada obra única e tocante. Viva a expressão livre e genuína!