Uralt

O tempo exerce curioso domínio sobre os papeis velhos.

Documentos se tornam encardidos, pardos, por sua influência,

Assumem um tom de barro que artistas chamam de sépia.

A alvura original cede lugar ao castanho intenso. As fotografias também,

As aquarelas, tudo empalidece como uma folha amarela que cai ao solo.

Da mesma forma os documentos antigos nas caixas de nossos avós,

Que gostávamos de bisbilhotar.

Nosso olhar jovem lia divertidamente a velha prosa das cartas

Amareladas, ali guardadas com carinho e saudades.

Dileto filho. Ultimamente não tenho recebido suas preciosas cartas.

Todos estamos com saúde. Todos mandam muitas lembranças.

Muitas saudades de sua mãe.

Recebi sua missiva e sua encomenda.

Recebi sua cartinha, muito pequenininha, muito lacônica

Mas mesmo assim chorei lágrimas de felicidade.

Por falta de assunto vou terminando, aceite a minha bênção,

Teu amado pai.

Te escrevo estas mal traçadas linhas para dar as minhas notícias

E ao mesmo tempo saber as suas.

A mãe, que anda muito doente como tu sabes, sempre chora por ti.

Do teu sempre fiel e devotado irmão.

Nós ríamos implacavelmente dessa linguagem antiquada,

Desses documentos para eles tão preciosos

Que cheiravam à naftalina usada para espantar as traças.

Alguém comentava que aquelas cartas, de tão antigas,

Foram escritas em Ur, na Caldéia e ríamos todos.

Agora, já tantos anos se passaram desde que nossos pais e avós se foram,

Como fluíram quase impercebíveis essas épocas já findas.

Olhamos para nossos antigos cadernos que guardamos,

Boletins escolares, fotografias, vão também tomando uma cor sépia, terrosa,

Como se uma tempestade de areia

Vinda de Ur, na Caldéia, os tivesse marcado.

A areia em brasa do tempo em disparada.

Em breve algum adolescente tomará esses cadernos e dirá:

Pertenciam àquele velho, parente nosso. Antes de morrer,

Pediu para tocarem um Stabat Mater em seu velório.

Uma música estranha. Era meio esquisito.

Às vezes, colocava uma gota na nuca de um perfume qualquer

E saía a passear, com uma bengala,

Pálido, amarelo, semelhante a um livro antigo de cor sépia,

Como se estivesse voltando, agora, definitivamente,

Para lugares distantes, cidades extintas,

Repletas de sombras e espectros tão desbotados e débeis quanto ele,

Como, por exemplo, a arenosa e desértica Ur, na Caldéia.

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