Cruzando o mar
Orientado pelos portulanos de Francisco Rodrigues,
Jorge Álvares foi o primeiro a chegar a Tamão em 1514.
As cartas diziam, segundo o Almanach Perpetuum,
Que o ponto equinocial e suas declinações apontavam
Uma distância de muitos jaos de Málaca a Ainão,
Passando pela terra vermelha de Champara,
E lutando contra as correntes e os ventos severos da costa,
Que não lançassem as naus na enseada de Cauchychina.
De Ainão viajar a Tamão ou ilhas Lin Tin,
Que dizem ser hoje na freguesia de Lantau,
Na entrada do Rio de Cantão.
Depois veio o insolente Rafael Perestrelo
Que quase pôs tudo a perder.
Então foi enviado o embaixador Tomé Pires, com grande cautela,
Com presentes, com missivas de El-Rei e outras mesuras.
De novo um truculento, Simão de Andrade, um fanguei miserável,
Provocou grande desencontro, grande violência,
E mais uma vez foi adiado o início de uma duradoura amizade.
Décadas depois, em outras monções, outras soberanias,
Finalmente Simão de Almeida, homem educado e respeitoso,
Ensinou a Leonel de Sousa, novo embaixador, as cortesias da China,
A etiqueta e as finezas do grande império,
Válidas das terras frias do Norte às terras quentes do Sul,
Mais o pagamento anual de quinhentos taéis de prata
E a história entre Macau e Portugal pôde enfim principiar.
Tomé Pires, bem antes de cair em desgraça
E terminar a vida em Sampitay, tão longe de casa,
Já escrevera que em Catai e em Cantão
Há as melhores sedas soltas, de cores vivíssimas,
Os mais suntuosos tafetás, largos e finos.
Tudo autêntico, sem falsidades nem fraudes,
Altamjas e porcelanas de esplendor jamais vistos.
Mercadores e corsários lhe disseram também
Que na China vendem-se bem a pimenta e o sândalo branco
Vindos do empório de Málaca,
Assim como lenho de aloés usado nas boticas,
Papagaios das Molucas e calhaus de Java.
No passar dos séculos houve prosperidade e comércio
E declínio e retraimento alternadamente,
O trato com Cipango, por Liuqiu até Nagasáki
Embarcando sedas, brilho, ferro, algodão, salitre, alvaiade,
Trazendo prata, espadas e sabres, em formas jian ou dao,
Muitos deles de até seis chis de comprimento,
Às vezes banhados a prata ou ouro e gravados com um bodhisattva,
Para abençoar a morte do guerreiro ferido.
Alguns tão caros que os fanquis os expunham no mercado em Macau
E pediam mil taéis de ouro ou até mais,
Mas não conseguiam vendê-los, diz o poeta Liang Pei Lan.
O pássaro qingniao apareceu de repente na colina distante
Próximo dele puderam observar o vulto de Xiwangmu,
De cuja grandeza não se conhece nem o começo nem o fim,
Comendo um prato de tchai-min que lhe deram em Taipa,
Merendando pêssegos muito doces e imortais.
Guan Yin vinha atenta a perceber os sons lamentosos do mundo
Para que se apressasse em socorro dos aflitos e perseguidos,
Da direção de Hengqin e Zhuhai, comendo chaoqi
Tendo saído pela manhã do Monte Putuo, em Zhejiang
Coberto de luo hansong e olmos brilhantes de orvalho,
Acompanhada de Shancai e Longnu a cantar dharanis eternos.
Também A-Ma compareceu,
Aquela que nasceu de um raio vermelho perfumado em Fujian
E depois tornou-se a rainha do mar e do Sul.
Brilhou ao longe em suas vestes vermelhas de tafetá lustroso
Comendo yu fu de Shunde após comer um minchi em Coloane.
Que A-Ma mantenha a proteção no mar em Oumún,
Contra os wakôs cruéis e outros perigos.
A-Ma ordena que ninguém ofenda os Tanka nem Yues,
Nem alguma pessoa pobre do mar ou do Sul.
Que Guan Yin reforce a sua benevolência
E ofereça a Oumún um coração
Incansavelmente compassivo e generoso.
Que Xiwangmu brinde Oumún com a quietude,
Tesouros infindáveis e prosperidade na Grande Baía,
E seja benfazeja concedendo-lhe a eternidade.
Um dia se romperam as peônias rosadas e as alfazemas lilases
Que formavam o laço firmado pelo arrojo, pelo vetusto tempo
E que mantinha e arrimava nossa amizade e parceria
Entre muitos vaivéns, banzeiros e procelas.
Sabíamos que não duraria para sempre.
Muitas coisas, porém, serão memoráveis duradouramente,
Alguma lembrança terna persiste de tão longa convivência.
Macau, talvez queiras esquecer as inevitáveis arrelias ocorridas,
Afinal éramos estrangeiros, fanquis ocupando tuas colinas e campos,
Mas pelo menos ainda te recordas, com carinho
Das vieiras preparadas na panela wok
Com o perfume de azeite do Alentejo a evolar pelas ruas
Nas noites mornas daqueles vagarosos séculos
Quando todos os astros brilhavam em teu céu claro e distinto
E o mar murmurava sua incessante e imutável canção?